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Serie de Estudos de Caso de Direito Ecológico: Anitápolis, Brasil.

Updated: Mar 9, 2022

By Gabriela Pinheiro


Introdução


Este post do blog é o quarto de uma série que nós, da Leadership for the Ecozoic (L4E – Liderança para o Ecozóico) Law & Governance Research Group (Grupo de Pesquisa de Direito e Governança), estamos escrevendo sobre nosso atual projeto de estudos de caso de direito ecológico. Nessa série, nós nos esforçamos para apresentar um relance de um mundo alternativo, moldado pelos princípios do direito ecológico. O emergente campo do direito ecológico busca estimular profundas transformações sociais, econômicas e jurídicas a fim de abordar o leque de crises de justiça ambiental que o planeta está enfrentando.

Cada post explorará a atual pesquisa que a L4E está realizando com cinco equipes de projetos sobre estudos de casos no mundo. Entre eles estão a gestão da vida selvagem em Vermont, o impacto do Canal de São Lourenço sobre Kahnawà:ke, no Canadá, a degradação ambiental do rio Etiópia, na Etiópia, o impacto da lei de Alto-Mar sobre a diversidade marinha e a proposta de mina de Anitápolis, no Brasil. Cada estudo de caso destacará as leis que permitiram os vários desenvolvimentos ou os projetos de políticas pelo mundo e oferecerá uma repaginação desses projetos em uma estrutura de direito ecológico.


Nosso quarto estudo de caso está relacionado à proposta de uma mina de fosfato e uma fábrica de ácido sulfúrico na cidade brasileira de Anitápolis, localizada no estado de Santa Catarina. O estudo de caso analisará as leis internacionais, constitucionais, estaduais e municipais que apoiaram a aprovação inicial da mina de fosfato em Anitápolis. Devido ao papel predominante que as mineradoras multinacionais estrangeiras representam nesse conflito ambiental, falaremos ainda brevemente sobre a natureza neocolonial de relações de poder. Caso você tenha perdido, nosso post sobre o impacto do Canal de São Lourenço sobre Kahnawà:ke, no Canadá, pode ser visto aqui, nosso post sobre a degradação ambiental do rio Etiópia, na Etiópia, e os atuais esforços para ter os direitos do rio reconhecidos pode ser encontrado aqui, e nosso último post sobre os impactos da proposta de tratado da BBNJ sobre a biodiversidade marinha no alto-mar pode ser encontrado aqui.


​​O que é direito ecológico?

Para aqueles que não estão familiarizados com o direito ecológico, apresentaremos uma breve visão geral de seus princípios fundamentais. Caso deseje conhecer um pouco mais sobre o direito ecológico, você pode ler o primeiro post desta série.


Como apresentado no Manifesto de Oslo da ELGA, o direito ecológico “está baseado em ecocentrismo, holismo, e justiça intra-/intergeracional e entre espécies.” O propósito é redirecionar os nossos sistemas jurídicos para que eles não mais priorizem os interesses dos seres humanos sobre a integridade e a saúde dos ecossistemas ou sobre os interesses de nossos vizinhos não humanos. Os limites planetários, como a quantidade de gases de efeito estufa que os humanos podem emitir com segurança, forneceriam limites claros sobre a atividade humana.[1] A Justiça intra-/intergeracional também exigiria que nossas leis impusessem equidade entre os atuais governos no norte global e as futuras gerações, comunidades indígenas e raciais, bem como os povos do sul global. Por fim, o direito ecológico incorporaria a equidade entre as espécies em nossos sistemas jurídicos, garantindo que as vidas, as necessidades e os interesses de outros seres sejam considerados em conjunto com os dos seres humanos. Isso reconhece que nós compartilhamos a Terra com uma infinidade de outras espécies que possuem tanto direito de viver e de batalhar [AC2] aqui quanto nós.


Carla Sbert, especialista em direito ecológico, apresentou três princípios interconectados no âmago do direito ecológico. Primeiro, o ecocentrismo reconhece a interconectividade de todos os seres e sua igualdade. Segundo, a primazia ecológica garante que a atividade humana não danifique de forma irreparável a ecologia. Isso envolve respeitar os limites planetários, limitar o consumo de materiais e de energia para respeitar os limites ecológicos, bem como restaurar os ecossistemas. Terceiro, a justiça ecológica exige que a igualdade intergeracional, intrageracional e entre as espécies seja parte de nossas leis. [2]




Depósito de Fosfato de Anitápolis


Anitápolis é uma pequena cidade de aproximadamente três mil habitantes localizada na zona da Mata Atlântica, em uma região montanhosa e de grande biodiversidade do Estado[AC3] de Santa Catarina, Brasil. Desde que um depósito de fosfato foi descoberto próximo à cidade, na década de 1920, o governo desapropriou grandes faixas de terrenos para uma potencial operação de mineração. Essa desapropriação obviamente teve impactos significativos sobre a cidade e seus habitantes, em especial porque as terras desapropriadas eram algumas das terras mais férteis da cidade, um duro golpe, considerando que a base da economia de Anitápolis é principalmente agrícola.


Apesar da pressa do governo em desapropriar essas terras, os depósitos não foram de fato explorados. Apenas há aproximadamente 30 anos uma empresa brasileira começou a explorar os depósitos de fosfato em Anitápolis. Demorou algumas poucas décadas para que a Bunge, outra mineradora, assumisse o controle dos depósitos e solicitasse uma licença para minerar o fosfato e construir uma fábrica de ácido sulfúrico a fim de produzir fertilizantes. A Bunge, que tem sua sede nos Estados Unidos, é uma de cinco empresas multinacionais que dominam a indústria de produção de fosfato no Brasil. As outras quatro são a Fosfértil (que, dependendo de uma decisão judicial, pode se fundir com a Bunge), a Copebrás (que pertence à multinacional inglesa Anglo American), a Ultrafértil (que é controlada pela Fosfértil) e a Serrana (que pertence à Bunge). Como veremos abaixo, a dominância de algumas poucas empresas multinacionais estrangeiras na indústria do fosfato brasileira tem implicações neocolonialistas, além da problemática concentração monopolista de poder econômico que ela representa.


Em resposta a esse renovado interesse nos depósitos de fosfato de Anitápolis e a proposta de mina e de fábrica de ácido sulfúrico da Bunge, alguns ambientalistas criaram a ONG Montanha Viva. A Montanha Viva busca despertar a consciência sobre os riscos ambientais e sociais associados com o projeto de desenvolvimento de mineração. Notavelmente, uma grande área do Bioma da Mata Atlântica, que representa um abrigo crucial para uma série de espécies ameaçadas da flora e da fauna, teria de ser cortada para abrir espaço para a mina proposta. Além disso, a proposta de mina apresentou sérios riscos de contaminação de solo e da água, que poderiam resultar em consequências prejudiciais para a saúde da população local. Por fim, o pesado tráfego industrial que uma grande mina traria para uma cidade tão pequena quanto Anitápolis teria necessariamente consequências sociais e ambientais.


Ação Judicial


Em 2009, o Instituto do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (IMA – anteriormente conhecido como FATMA) outorgou à Bunge uma licença ambiental permitindo que ela desse andamento ao projeto de extração em Anitápolis. A Montanha Viva reagiu ajuizando uma ação judicial contra a Bunge, o IMA, bem como os governos municipal, estadual e federal. Dessa forma, ela buscava proteger os interesses dos moradores de Anitápolis, bem como impedir a destruição de áreas de proteção ambiental do Bioma da Mata Atlântica. Seu pedido judicial foi parcialmente acolhido e a justiça concedeu uma liminar para a ONG suspendendo os efeitos da licença contestada outorgada pelo IMA.


Em 2016, antes que a questão fosse julgada no mérito, a Bunge desistiu do processo de licenciamento e o processo judicial foi arquivado. Entretanto, a Montanha Viva recorreu ao Superior Tribunal de Justiça para requerer que a questão fosse decidida no mérito de forma a ter uma decisão judicial definitiva impedindo a implantação de qualquer projeto de mineração futuro em Anitápolis. Esses receios são em parte alimentados pelo fato de que a Bunge vendeu seus direitos de mineração em 2016 para a Vale – a empresa infamemente responsável por duas quedas de barragens de resíduos mortais no Brasil em 2015 e em 2019. A Vale supostamente está em negociações com a empresa americana Mosaic Company em relação aos depósitos de Anitápolis. Enquanto o recurso da Montanha Viva ao Superior Tribunal de Justiça ainda está em andamento, a equipe jurídica da ONG indicou que eles estão preparados para recorrer a tribunais internacionais se eles não conseguirem a medida requerida aos tribunais brasileiros.




Direito Internacional e Constitucional


Os princípios do direito ecológico servem de base para o artigo 225 da Constituição Federal que define que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Notavelmente, o dever de preservar o ambiente para as futuras gerações incorpora parte do princípio da justiça ecológica do direito ecológico. Esse reconhecimento de um dever para com as gerações futuras está também em linha com o direito internacional; vide, por exemplo, o Parecer Consultivo OC-23/17 do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos.


Infelizmente, uma série de outros artigos da Constituição têm uma natureza desenvolvimentista que tem sido utilizada para definir o interesse público, como a exploração de recursos naturais de valor para o benefício dos humanos. Isso não apenas enfraquece a eficácia do artigo 225, mas também viola os princípios do ecocentrismo e da primazia ecológica do direito ecológico. Assim, por si só, o artigo 225 é insuficiente para sustentar os princípios ecológicos. Entretanto, continua sendo um importante instrumento legal e distingue o Brasil da maioria dos países ocidentais onde não há reconhecimento de um dever constitucional ambiental para com as gerações futuras.


Lei Estadual e Municipal


Analisando a legislação estadual e municipal, destacaremos duas questões principais: (1) o conflito de competência em questões ambientais relacionadas aos órgãos de licenciamento e inspeção; e (2) a concessão de uma licença ambiental à Bunge para sua proposta de mina.


O atual processo de licenciamento ambiental não defende os princípios do direito ecológico. Isto porque a maioria da doutrina brasileira adota uma visão antropocêntrica do propósito do licenciamento, na medida em que trata os recursos naturais de valor principalmente como algo a ser explorado para o bem do maior número de seres humanos.


Por outro lado, a lei estadual 17.895, de Santa Catarina, em alguma medida, reflete os princípios dos limites planetários, bem como uma abordagem baseada no sistema que reconhece a natureza finita de determinados recursos e as consequências necessárias que surgem de sua extração. A lei estabelece uma zona livre de exploração de fosfato natural ou derivados de rocha fosfática e armazenamento de enxofre submetido a reações químicas visando a produção de ácido sulfúrico.


Assim, pesquisando as leis internacionais, constitucionais, estaduais e municipais, nosso estudo de caso destacará as muitas deficiências do sistema jurídico brasileiro na defesa dos princípios do direito ecológico. Mas também conseguimos encontrar regiões onde os princípios do direito ecológico já estão incorporados à lei, demonstrando um caminho claro para uma maior implementação do direito ecológico.



Uma Perspectiva Descolonizadora


Gostaríamos de concluir nosso estudo de caso com uma perspectiva descolonizadora. Extraído da obra de Anibal Quijano sobre a colonialidade do poder, podemos destacar como o investimento da Bunge nos depósitos de fosfato em Anitápolis dão continuidade às relações coloniais nas esferas econômicas e políticas no Brasil. Assim, embora o sistema colonial formal possa ter sido desmantelado há anos, as relações de poder e exploração continuam através de atores privados, como a Bunge. Além disso, os conceitos de fascismo social, e particularmente fascismo territorial, destacado por Boaventura de Sousa Santos, descrevem adequadamente a presença da Bunge em Anitápolis. O fascismo territorial descreve situações em que atores sociais com forte capital patrimonial, como a Bunge, retiram o estado do controle do território em que operam. Eles o fazem, seja cooptando ou coagindo as instituições estatais, a fim de exercer a regulamentação social e ambiental para atingir seus próprios fins, em detrimento dos interesses das comunidades locais.


Considerando tudo exposto acima, a proposta de mina em Anitápolis revela a atual perspectiva antropocêntrica da lei ambiental que retratou o projeto como uma rede positiva para a economia e não reconheceu os danos ambientais e sociais que ele criaria. Em resposta, precisamos adotar uma perspectiva de direito ecológico que realmente imponha os princípios de integridade e comunhão com a natureza, aprendendo com conhecimento que transcenda a modernidade ocidental.


Outras Leituras sobre Direito Ecológico:

Kirsten Anker et al, eds. From Environmental to Ecological Law (Routledge, 2020).

Carla Sbert, The Lens of Ecological Law: A look at mining (Edward Elgar Publishing, 2020).

Klaus Bosselmann & Prue Taylor, Ecological Approaches to Environmental Law (Edward Elgar Publishing, 2017).


​​[1] Geoffrey Garver, “The rule of ecological law: The legal complement to degrowth economics” (2013) 5:1 Sustainability 316.




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